O deleite da fragmentação

quarta-feira, 20 de junho de 2012 Postado por Lindiberg de Oliveira


Um começo apropriado seria fazermos a pergunta schellinguiana: o que o “tornar-se homem” por parte de Deus na figura de Cristo, sua descida da eternidade ao domínio temporal da nossa realidade, representou para o próprio Deus? Aquilo que para nós, finitos mortais, parece ter sido a descida de Deus até nós, não pode ter sido, do ponto de vista de Deus, uma ascensão? E se, como Schelling deu a entender, a eternidade for inferior à temporalidade? E se a eternidade for um domínio estéril, impotente e sem vida de potencialidades puras, que, a fim de efetivar-se, deve passar pela existência temporal? E se a descida de Deus até o homem, longe de ser um ato de graça em favor da humanidade, tiver sido a única maneira de Deus ganhar plena atualidade, libertando-se das sufocantes restrições da eternidade? E se Deus só for capaz de se atualizar através do reconhecimento humano?

Devemos nos livrar do velho motivo platônico do amor como Eros que gradualmente se eleva do amor por um indivíduo em particular ao amor pela beleza do corpo humano em geral, e daí ao amor pelo belo como tal, até chegar ao amor pelo Bem supremo além de todas as formas. O verdadeiro amor é o trajeto precisamente oposto: o de deixar para trás a promessa da eternidade por um indivíduo imperfeito (essa sedução da eternidade pode assumir várias formas, de uma fama pós-mortal ao cumprimento de determinado papel social). Não será o gesto de escolher a existência temporal, de por amor abrir mão da existência eterna – segundo o exemplo de Cristo e o de Siegmund, no segundo ato de As Valquírias de Wagner, que prefere permanecer mortal se sua amada Sieglinde não pode segui-lo ao Valhala, a morada eterna dos heróis mortos – o ato ético mais elevado de todos?

Costumamos dizer que o tempo é a mais consumada das prisões, e que o propósito de toda filosofia e de toda religião é libertar-nos dos grilhões do tempo para adentrarmos a eternidade. Porém e se, como Schelling dá a entender, for a eternidade a mais consumada das prisões, uma sufocante clausura? E se for apenas o resvalar tempo adentro a introduzir uma Abertura na experiência humana? Não será “tempo” o nome para essa ontológica abertura?

O evento da encarnação não é tanto a ocasião em que a realidade temporal da experiência é tocada pela eternidade, mas mais o momento em que a eternidade consegue alcançar o tempo. Esse mesmo argumento foi sustentado muito claramente por conservadores inteligentes como G. K. Chesterton, que a respeito da popular noção de uma “alegada identidade espiritual entre o budismo e o cristianismo” escreveu:

O amor deseja a personalidade, pelo que o amor deseja a divisão. O cristianismo deleita-se instintivamente em que Deus tenha quebrado o universo em pedacinhos. É esse o abismo intelectual entre budismo e cristianismo: para o budista ou para o teosofista a personalidade é a queda do homem, enquanto para o cristão ela é o próprio propósito de Deus, o sentido mais essencial de sua ideia cósmica. O mundo anímico dos teosofistas pede que o homem o ame para que posso lançar-se dentro dele. O centro divino do cristianismo efetivamente lançou o homem para fora dele, para que o homem se tornasse capaz de amá-lo. Todas as filosofias modernas são cadeias que conectam e algemam; o cristianismo é uma espada que separa e liberta. Nenhuma outra filosofia faz com que Deus verdadeiramente se deleite com a fragmentação do universo em almas viventes.

Slavok Žižek, em The Puppet and the Dwarf.