O domínio da ideologia

terça-feira, 28 de julho de 2015 Postado por Lindiberg de Oliveira
Desde Platão se discute a desequilibrada relação entre o político e o filósofo. Em Platão, o verdadeiro filósofo é também o verdadeiro político, enquanto o sofista, o cara aplacado pela ideologia, é a falsificação de ambos.
É evidente que existem numerosas expressões ideológicas. Nas palavras de Marx, ideologia foi acentuada como uma falsa consciência; uma ferramenta que deforma a realidade, colaborando para certa manutenção de relações de dominação. O erro de Marx foi achar que ideologia se manifesta apenas no atrito entre classes sociais. Ora, o próprio marxismo se tornou uma ideologia, fechada em si mesma, e apontando como inimigo qualquer um fora de seus arraiais.
A submissão a uma ideologia se mostra como um grande capricho da alma humana, que sempre tende a se inclinar confortavelmente atrás de um ideal que ofusca todo o brilho da realidade; ou seja, o ideólogo é aquele que ajusta a realidade àquilo que ele acredita. Veja o exemplo de Jonas, que foi enviado para pregar o arrependimento a uma nação pagã. O profeta se revela um nacionalista com uma alma extremamente perturbada, enxergando Nínive, a nação pagã, como inimigos a serem destruídos, e não a serem salvos. Esse é o resultado quando a ideologia política se fanatiza na alma de alguém, tornando um dos fatores básicos que gera indisposição para amar e acolher o próximo. O que foi o grande drama de Jonas ornamenta simbolicamente nosso entendimento para perceber os paradigmas dos dias atuais.
Ideólogos sempre lutam — e matam — em nome do “bem maior”. Esse espetáculo da ideologia não encerra uma tragédia, mas guarda dentro da história a manifestação radical do mal no mundo. Isto nada mais é que a consequência de reduzir a realidade aos critérios da própria imaginação humana, de que é possível assumir o papel de Deus e criar o paraíso na terra; mesmo que para conseguir, ter de fazer dela um inferno. Qualquer ideologia, seja de direita ou esquerda, acreditam possuir a chave da compreensão do mistério da história e da sua redenção. Desmistificam o sagrado para sacralizar a ação política. Assim, lutar por um ideal, será sempre sinônimo de aderir ao espírito de rebanho, se engajando em um partido ou algum programa; uma fuga atrás da massa onde a consciência é diluída, culminando numa recusa da responsabilidade individual — um abraço para os militantes políticos.
A filosofia, já na sua inauguração, foi a tentativa de resistir a esse tipo de fantasia política que alarga as piores dimensões da estupidez humana. Por outro lado, o Evangelho é a própria superação de toda postura ideológica. Para os inteligentinhos que recorrem à etimologia da palavra ideologia, tudo pode ser uma forma de expressão ideológica — como quem diz: “todo mundo possui uma ideologia”. Não é bem assim. Como cristãos, somos convidados por Jesus a fazer essa crítica a toda postura ideológica, que infelizmente também é abraçada por aqueles que se dizem seguidores de Jesus. Por consequência, o cristianismo se assume como ideologia quando abraça práticas farisaicas para determinar os certos e os errados ou salvos e condenados; quando apresenta típicos comportamentos convencionais, suntuosos, vaidosos; quando se apropria de um sistema político dito cristão; quando exige uma organização da sociedade ou um sistema moralista empenhado em converter islamicamente a todos.
Como sugere Jacques Ellul, é necessário criticar nossas próprias ideias, convicções, igrejas e movimentos, tudo à sombra de uma leitura bíblica que não seja usada para justificar nosso comportamento, fugindo do domínio ideológico.
Portanto, estou convencido que o Evangelho não deve ser definido como um campo coerente de crenças e doutrinas fechadas a serem rigorosamente adotadas. No momento em que a religião, de forma estelionatária, se apropria do Evangelho e apresenta um cardápio de sentenças a ser fielmente seguido, então, o Evangelho se torna uma ideologia que se espalha pelo discurso. Longe disso, o Evangelho deve ser entendido como uma pessoa que se manifesta nas relações de amor.
Jesus, que andava exalando escândalos entre os religiosos, não foi batizado sob uma linguagem ideológica. Seria pertinente terminar, distraído leitor, dizendo que o Rabi de Nazaré foi indiferente a qualquer ideologia. Foi intransigente com a ordem estabelecida, expondo uma postura basicamente negativa em relação à conformidade de crenças dogmaticamente organizadas. Não perdia tempo correspondendo aos caprichos institucionais. Tinha como templo o universo ao seu redor, onde plantava liberdade nos corações de todos que se detinham no seu caminho. Jesus não criou uma nova religião para concorrer com aquelas que já existiam; não criou o cristianismo e nem mesmo a igreja da maneira como a concebemos hoje — centralizada, soberba, onde não se põe a serviço, querendo apenas liderar e ser servida. O Rabi caminhou na simplicidade. E talvez simplicidade seja a maior marca da autenticidade de Deus.

©2015 Lindiberg de Oliveira